A alma encantadora das ruas

A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas.

João do Rio, como ficou conhecido João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, foi um escritor brasileiro conhecido pelos contos, concentrados nos primeiros anos de 1900, que tratavam da sociedade e, especialmente, do Rio de Janeiro e seus cidadãos.

Em A alma encantadora das ruas, o autor extrai do Rio de Janeiro do início do século XX aquilo que representa o seu cerne: a rua e seus personagens. O autor a glorifica e descreve esse universo – mercadores a gritar, pintores e estivadores, vagabundos e ladrões, os chineses e seu ópio, prostitutas e pedintes –  de uma forma tão atual que, não fossem os parágrafos rebuscados, seria possível imaginar seus textos sendo escritos dias atrás.

É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas. Do alto de uma janela como Paul Adam, admira o caleidoscópio da vida no epítome delirante que é a rua; à porta do café, como Poe no Homem da multidão, dedica-se ao exercício de adivinhar as profissões, as preocupações e até os crimes dos transeuntes.

O flâneur é o bonhomme possuidor de uma alma igualitária e risonha, falando aos notáveis e aos humildes com doçura, porque de ambos conhece a face misteriosa e cada vez mais se convence da inutilidade da cólera e da necessidade do perdão.

Eu fui um pouco esse tipo complexo, e, talvez por isso, cada rua é para mim um ser vivo e imóvel.

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